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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

TBT - Fala com a Marcia

 'Fala com a Márcia': dois anos após crise no governo Crivella, servidora continua empregada em cargo de confiança na Comlurb

Prefeitura alega que função dela é realizar pesquisas junto a empregados, mas não sabe especificar com que frequência comparece ao trabalho

Nicollas Witzel

Márcia Nunes (à esquerda) é ouvida em CPI do Sisreg, ao lado dos vereadores Rosa Fernandes e Paulo Pinheiro em 19/03/2019 Foto: Paulo Cappelli
Márcia Nunes (à esquerda) é ouvida em CPI do Sisreg, ao lado dos vereadores Rosa Fernandes e Paulo Pinheiro em 19/03/2019 Foto: Paulo Cappelli

RIO - Dois anos depois de estar no meio de uma crise na gestão de Marcelo Crivella e levantar suspeitas de desvio de função nos quadros da prefeitura, a servidora Márcia da Rosa Pereira Nunes continua empregada em um cargo de confiança da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), sem registro de presença ou atribuições listadas no sistema de transparência da empresa.

Ela ficou conhecida no episódio lembrado pelo mote "Fala com a Márcia", de julho de 2018, no qual Crivella, em uma reunião com 250 pastores e líderes evangélicos, ofereceu facilidades a aliados que procurassem a funcionária. Ao discursar no "Café da Comunhão", Crivella disse que estava fazendo um mutirão de tratamento de catarata. "Eu contratei 15 mil cirurgias até o final do ano. Então, se os irmãos tiverem alguém na igreja, e se os irmãos conhecerem alguém, por favor, falem com a Márcia. Ou com o Marquinhos”, disse Crivella. Marquinhos, a quem ele se refere, é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, apontado como o chefe do grupo "Guardiões do Crivella", formado por assessores pagos para constrager jornalistas e cidadãos que se queixassem das unidades de saúde, revelado no fim de agosto em reportagens da TV Globo.

Márcia Nunes foi nomeada para a vaga de Coordenadora Técnica em janeiro de 2017, lotada na Diretoria de Gente e Conectividade. Ela é a única funcionária de seu setor, o Núcleo de Apoio Operacional, e recebe salário no valor de R$ 12.407. A prefeitura alega que sua função é realizar pesquisas e entrevistas junto a empregados quando o serviço for determinado pela Comlurb, mas não sabe especificar com que frequência a funcionária comparece ao trabalho. Assistente social de formação, Márcia não possui registro em folha de ponto nem tem local ou horário fixo para se apresentar ao serviço.

Uma pesquisa no Sistema Integrado de Codificação Institucional (SICI), de consulta pública, revelou que este é o único cargo da companhia sem atribuições listadas no site — a transparência de cargos e salários de funcionários públicos é exigida por lei. Além disso, o posto ocupado por Márcia só pode ser movimentado pelo próprio prefeito, devido a um artigo do decreto municipal 44793/2018. Com isso, a funcionária só poderia ser demitida por ordem direta de Crivella.

Em resposta aos questionamentos enviados pela reportagem, a prefeitura diz que Márcia Nunes foi contratada para a "execução de tarefas designadas pela Presidência". Suas funções seriam utilizadas para ações preventivas e medidas de apoio aos funcionários e suas famílias em casos envolvendo, por exemplo, vícios e problemas de relacionamento no ambiente de trabalho. Diz ainda que, devido à pandemia do novo coronavírus, as pesquisas a cargo de Márcia Nunes foram suspensas em cumprimento ao isolamento social, e que a funcionária está voltando de forma gradual ao trabalho presencial, auxiliando no serviço de RH da Comlurb.

Ex-funcionários da companhia que trabalharam com Márcia descreveram à reportagem que sua frequência começou a cair após o depoimento na CPI que investigou abuso de autoridade do prefeito no caso Sisreg, em 2018. "Antes da CPI, ela aparecia todos os dias", disse um deles, em condição de anonimato. Eles também questionam a razão para que a funcionária desempenhe, isolada em um setor que responde diretamente ao prefeito, o mesmo papel que outros assistentes sociais concursados. Para esses, valem outras regras: é necessário registrar presença no relógio eletrônico de ponto, atender em instalações específicas ou em visitas previamente programadas, produzindo registro, e ficam lotados na Gerência de Qualidade de Vida, subordinada à Diretoria de Gente e Conectividade, mas sem relação com o Núcleo de Apoio Operacional. A movimentação desses cargos também não depende de aval exclusivo do prefeito.

Assim como Márcia Nunes, a prefeitura do Rio tem outros funcionários encaixados em cargos de confiança e suspeitos de desempenhar funções alternativas a mando do prefeito. No fim de agosto, uma reportagem do RJTV denunciou a existência de uma articulação de funcionários públicos para impedir denúncias de irregularidades nos hospitais municipais à imprensa. Organizados em grupos de mensagens, os servidores ocupam cargos de assessoria ou funções de confiança, similares às posições que Márcia ocupou desde que Crivella assumiu a prefeitura do Rio. Assim como ela, os funcionários envolvidos nesta nova polêmica da prefeitura têm registros de proximidade com Crivella, incluindo fotos, vídeos e diversas postagens nas redes sociais.

Caso Sisreg

Em julho de 2018, Crivella recebeu na sede da prefeitura cerca de 250 pastores e líderes evangélicos. O encontro foi feito a portas fechadas e todos foram instruídos a não produzir registros da reunião. O uso de aparelhos celulares foi proibido. Um áudio revelado pelo GLOBO mostrou que, durante o evento, Crivella recomendou que a funcionária fosse procurada para ‘agilizar’ procedimentos médicos, como cirurgias de catarata e vasectomia, furando a fila pública do Sistema de Regulação (Sisreg), além de oferecer outras vantagens como a isenção de IPTU para imóveis usados por igrejas.

— Estamos fazendo o mutirão da catarata. Eu contratei 15 mil cirurgias até o final do ano. Se os irmãos conhecem alguém, por favor, que falem com a Márcia. Ou com o Marquinhos. Ela vai anotar, vai encaminhar e, daqui a uma semana ou duas, está operando — prometeu Crivella, na época. O evento, que ficou conhecido como “Café da Comunhão”, não constava em sua agenda oficial.

Crivella recebeu 250 pastores e líderes de igrejas no Palácio da Cidade em agosto de 2018 Foto: Bruno Abbud
Crivella recebeu 250 pastores e líderes de igrejas no Palácio da Cidade em agosto de 2018 Foto: Bruno Abbud

Segundo a Procuradoria Regional Eleitoral (PRE), o encontro teve “claro intuito de beneficiar eleitoralmente o grupo político do prefeito, o que prejudicou a igualdade de concorrência entre os candidatos das eleições daquele ano”. Crivella virou alvo de dois pedidos de impeachment na Câmara Municipal ­ — ambos recusados — e de uma solicitação de investigação por improbidade, recebida pelo Ministério Público Estadual. O episódio também levou à instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, apelidada de 'CPI da Márcia', que acabou por absolver o prefeito e sua assessora. A Câmara dos Vereadores considerou que a oferta feita por Crivella não passou de uma promessa.


Convite no WhatsApp para reunião do prefeito com líderes evangélicos Foto: Reprodução
Convite no WhatsApp para reunião do prefeito com líderes evangélicos Foto: Reprodução


Vereadores da oposição, no entanto, alegam que o fracasso da CPI foi resultado de uma manobra do prefeito, após uma rápida articulação para que a comissão fosse formada, em sua maioria, por representantes governistas.

— Nós íamos constituir uma CPI de verdade, colhemos as assinaturas necessárias e, quando nos preparávamos para apresentar nosso requerimento, os representantes do lado de lá entraram por uma outra porta da assembleia, ocuparam o lugar primeiro e protocolaram a CPI que eles queriam. Prevaleceu o horário de entrada e nós acabamos com uma CPI chapa-branca, formada por apoiadores. Por isso é que foi um fracasso — diz a vereadora Teresa Bergher (Cidadania). Ela presidiu a CPI da Comlurb, instaurada posteriormente, que investigava o uso da máquina pública para atender a interesses eleitorais, como auxiliar na campanha do filho de Marcelo Crivella.

Desvios de função e 'Guardiões do Crivella'

Uma série de reportagens da TV Globo, exibidas a partir do dia 31 de agosto, revelou um esquema com funcionários comissionados da Prefeitura do Rio — com salários de até R$ 10 mil — destacados para atrapalhar o trabalho da imprensa e constranger cidadãos que davam entrevistas na porta dos hospitais. Eles eram coordenados por Marcos Paulo de Oliveira Luciano, identificado nas mensagens como 'ML'. Marcos Luciano é assessor especial do gabinete de Crivella desde 2017, mesma época da nomeação de Márcia na Comlurb, e já recebeu uma moção de aplausos e louvor na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), a pedido da deputada Tia Ju, do Republicanos — o mesmo partido do prefeito. Marcos Luciano trabalhou como missionário com Crivella na África e no Nordeste do Brasil e também foi um dos coordenadores das campanhas eleitorais do bispo ao Senado e à prefeitura. Em julho, ele recebeu salário no valor de R$ 10,5 mil.

Articulados por mensagens de texto, os funcionários se dividiam em 'plantões' na frente dos hospitais públicos para impedir que jornalistas e cidadãos denunciassem problemas nos hospitais ou na gestão da saúde municipal. Em duplas ou sozinhos, os servidores instituíram um sistema de ponto em que deveriam enviar fotos na frente dos hospitais para comprovar sua presença no local designado pelos chefes. Eles recebiam as ordens e cobranças por meio de três grupos no WhatsApp: 'Guardiões do Crivella', 'Plantão' e 'Assessoria Especial GBP' (Gabinete do Prefeito).

Marcos Paulo, apontado como chefe dos "Guardiões do Crivella", ao lado do prefeito Foto: Reprodução
Marcos Paulo, apontado como chefe dos "Guardiões do Crivella", ao lado do prefeito Foto: Reprodução

Dentro dos grupos, alguns números chamaram a atenção: o chefe da Casa Civil, Ailton Cardoso da Silva, era um dos administradores. O procurador-geral do município, Marcelo da Silva Moreira Marques, e a secretária de Saúde, Bia Busch, também estavam lá. Além deles, o secretário de Cultura, Adolfo Konder, o fotógrafo pessoal do prefeito, José Edivaldo, a assessora da primeira-dama, Rosângela Gomes, e a consultora de Comunicação da Prefeitura, Valéria Blanc, também integravam o grupo montado para impedir as denúncias. Números de vereadores, diretores de órgãos públicos, como o Instituto Pereira Passos, e até do próprio prefeito Marcelo Crivella foram identificados nos grupos.

— O prefeito acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: ‘Parabéns! Isso aí!’ — contou à TV Globo um dos funcionários envolvidos nos grupos. Desde a revelação do esquema, o grupo sofreu uma debandada de participantes. Alguns funcionários conversaram com a imprensa e alegaram sofrer ameaças de demissão. Segundo um deles, nas reuniões de equipe realizadas no prédio da prefeitura não era permitido que nenhum funcionário usasse aparelhos celulares e era exigido, de todos, que passassem por detectores de metal ao entrar na sala.

— O sistema todo é chefiado pelo doutor Marco Luciano. Doutor Marco Luciano é um amigo do Crivella. É o chefão geral, tá? Não sei se ele é parente, se é da Igreja Universal, não sei, não, mas sei que ele é muito chegado. É uma pessoa de extrema confiança do prefeito Crivella.

A Prefeitura do Rio não nega a existência dos grupos e diz, em nota, que “reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde".

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