Apesar dos esforços e da tecnologia empregados — além da insubstituível vassoura —, parte dos detritos ainda fica pelo caminho, em encostas de morros e às margens de rios e lagoas
Lixo acumulado pela cidade. Na foto, a Rua Fernando Guimarães, em Botafoto. — Foto: Márcia Foletto |
Eleita recentemente pela revista Time Out a oitava rua mais legal do mundo, a Arnaldo Quintela, em Botafogo, tem um lado “B” nada glamouroso. Nas primeiras horas do dia, depois que os boêmios se recolhem, quem sofre são os pedestres, obrigados a desviar de pilhas de lixo. A situação não é diferente em outros pontos da cidade. Na Urca, funcionários de um bar diante da mureta à beira da baía — ponto disputado por locais e turistas — recorrem ao “jeitinho’’ enquanto os garis não aparecem: em vez de guardar o material descartado até a coleta passar, varrem os detritos e os deixam esparramados ao lado de uma lixeira.
Na avaliação de especialistas, essa relação do carioca com seu lixo se explica por vários fatores, a começar pela falta de educação.
— O brasileiro, não só o carioca, não se preocupa porque acha que já paga para o lixo ser retirado, e que há alguém para fazer isso por ele. Só que não leva em conta que esse tipo de comportamento pode se reverter contra si, se esse lixo obstruir bueiros e contribuir para enchentes e doenças — diz a psicóloga Claudia Melo, especializada em terapia cognitiva e comportamental.
Na Zona Norte, a aposentada Maria Helena dos Santos, que convive diariamente com a sujeira jogada na Rua Marechal Bittencourt, no Riachuelo, onde mora, tem suas queixas:
— O lixo se acumula aqui por culpa da própria população. Eu separo reciclados, mantenho meu lixo em uma cesta no quintal até o dia de o caminhão passar. Mas tem muito morador que se aproveita do horário irregular da coleta para jogar na rua, usando como desculpa a falta de informação.
A conta dessa sujeira é salgada e quem paga é o próprio carioca. Para cuidar da guimba de cigarro na calçada ao entulho largado em via pública, a Comlurb estima gastar por ano R$ 110 milhões, entre equipamentos e salários de garis. Esse dinheiro seria suficiente para manter dez Unidades de Pronto Atendimento (UPA) por ano ou dois grandes hospitais de emergência.
Reforço nos dias de sol
Em dias de sol forte e praias lotadas, a Comlurb recorre a quatro equipamentos manuais adaptados para a areia, que recolhem o lixo deixado por banhistas em locais como Arpoador, Barra e Piscinão de Ramos. No dia a dia, vias de grande circulação, como os calçadões de comércio de bairros (Madureira, Campo Grande, Bangu), a Rua Olegário Maciel, na Barra, e a orla chegam a ser varridas de três a cinco vezes por dia.
Apesar dos esforços e da tecnologia empregados — além da insubstituível vassoura —, parte do lixo ainda fica pelo caminho, em encostas de morros e às margens de rios e lagoas. Levado pela água, esse material pode chegar à Baía de Guanabara. Usadas para evitar esse dano, as 17 ecobarreiras do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) contêm 4.810 toneladas de detritos por mês. A Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema) estima que pelo menos 90 toneladas deixam de ser recolhidas por dia na cidade.
— Se um local geralmente é mantido limpo, a tendência é que não se deixe lixo ali. E nem sempre quem joga resíduos em qualquer lugar, como encostas e rios, tem consciência dos problemas ao meio ambiente — diz o coordenador de sustentabilidade da entidade, Carlos Rossini.
Em Botafogo, na Rua Fernandes Guimarães, pilhas de sujeira se acumulam em frente ao Espaço de Desenvolvimento Infantil Casa da Criança, onde estudam as filhas, de 3 e 5 anos, da empresária Michele Back, de 36 anos. Ela diz que, no caminho, sempre fica atenta para que nenhum caco de vidro fique preso nas rodas das mochilas das meninas:
— As pessoas colocam o lixo bem cedo, muito antes de o caminhão de coleta passar. A Comlurb deveria orientar os moradores a deixá-lo em um local que não fosse em frente a uma escola.
A diretora do estabelecimento, Maia Barcelos, de 38 anos, conta que o problema já tem três anos, e que pais, professores e alunos fizeram um abaixo-assinado em 2023 pedindo aos moradores que não jogassem lixo. O documento não surtiu efeito.
— A discussão passa pelo conceito do que o espaço público representa para a população. Não há um senso de pertencimento, de que a rua é de todos — observa o antropólogo Maurício Waldman, autor do livro “Lixo: Cenários e desafios”, acrescentando que eventuais atrasos na passagem dos caminhões, ausência de porteiro ou irregularidades na coleta não são justificativas para o despejo indevido.
Vassouras do jornaleiro
Ainda em Botafogo, na Rua Voluntários da Pátria, o jornaleiro Francisco de Paula, de 40 anos, diz que um dos problemas é o horário irregular da passagem dos caminhões de coleta. Sem alternativa, ele acaba bancando o “gari” da vizinhança:
— Todo dia chego uma hora antes de abrir para varrer a rua. Até fralda usada já jogaram aqui — diz Francisco, que guarda quatro vassouras na banca.
Nas comunidades em encostas, a situação chega a ser tão crítica que a Comlurb tem um time de 25 garis alpinistas. Um dos pontos em que a empresa diz atuar é o Morro da Mineira, no Catumbi. Mesmo assim, O GLOBO registrou semana passada um lixão num dos locais mais altos da favela. O problema não poupa áreas mais acessíveis, como a Favela do Metrô, na Rua São Francisco Xavier, no Maracanã, onde a Comlurb também diz fazer retiradas periódicas. Lá, um terreno baldio é usado como depósito. Os detritos chegam aos trilhos da SuperVia.
— A comunidade tem coleta, mas as pessoas jogam ali. Quando chove, o lixo se espalha pelo chão, e surgem muitos ratos e baratas — conta a merendeira Graziela Almeida, de 33 anos, moradora do Morro da Mangueira, vizinha à do Metrô.
A sujeira nos trilhos perto da Favela do Metrô está longe de ser exceção. Por mês, a concessionária recolhe em toda a rede 1.200m³ de lixo, o que seria suficiente para encher 52 vagões.
O antropólogo Roberto DaMatta afirma que o fenômeno da imundície nas ruas evidencia a necessidade de o país inteiro, e não apenas o Rio, oferecer ensino de melhor qualidade.
— Depois de adulto é difícil alguém mudar os hábitos. A questão de jogar lixo na rua se explica da mesma forma que outras regras de convívio social não respeitadas. É com o lixo, mas pode ser, por exemplo, quando a pessoa conscientemente desrespeita as leis de trânsito — diz.
Reciclagem falha
Outro lado do problema envolve o lixo reciclado, disputado por catadores informais que se antecipam à coleta oficial e, ao separar o material para revenda, muitas vezes abandonam no chão o que não podem aproveitar. Materiais como papelão, latas de alumínio, plástico e vidro só deveriam ser manipulados em instalações da Comlurb, onde catadores de cooperativas credenciadas fazem a triagem final:
— É uma questão social. O último censo da prefeitura sobre população em situação de rua (2023) indicou que, em um universo de 7.242 pessoas, cerca de 40% (2,9 mil) declaram trabalhar como catadores — explicou o coordenador da coleta seletiva da Comlurb, Édson Saint Roman.
Uma iniciativa adotada para tentar reduzir o despejo irregular perdeu força. Quem joga lixo na rua está sujeito a multas que começam em R$ 282,23 e podem passar de R$ 10 mil, conforme o volume. Na teoria. A inadimplência do programa Lixo Zero só aumenta. Em 2013 era de 40%. Em 2023 alcançou 81%
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